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Foto do escritorLuciana Garcia

Carga e culpa: trazendo verdades sobre o dia-a-dia da maternidade atípica



Uma mulher com camisa branca com pequenas listras azuis está sentada num sofá azul claro com almofadas quadriculadas. Ao fundo, vemos uma estante um pouco desfocada. A mulher está com os cotovelos apoiados no joelho e leva as mãos as rosto em sinal de preocupação. Suas sobrancelhas estão franzidas e ela olha para o lado, de onde vem a luz sutil que ilumina a fotografia.
O excesso de responsabilidades afeta a saúde da mãe atípica

Faz tempo que estou querendo falar sobre isso. E é um assunto bem delicado, mas acredito que precise ser falado mesmo assim, porque não encontrei nada relacionado carga mental e culpa materna (atípica) até aqui. Quando eu estava grávida, ou mesmo antes de engravidar, eu costumava pensar que a minha criação seria bem mais desprendida do que o modelo de maternidade que eu conhecia até então.


Eu achava uma bobagem essa coisa de fazer lembrancinha de nascimento, enfeite de porta de maternidade, festa de aniversário de um ano. E estava bem segura e convicta nessa posição, muito-bem-obrigada. Só que aí, depois que descobrimos a trissomia da Maya, me bateu uma culpa muito estranha. E não tinha nada relacionado a ela (Maya), e sim ao fato de que as pessoas pudessem achar que eu não estava fazendo estas coisas porque ela “não merecia”, digamos assim. E eu jamais não as faria por um motivo assim! Até porque ela merece tudo de bom que a vida pode proporcionar.


O engraçado é que se eu tivesse uma filha típica (sem deficiência), essa seria apenas uma forma de maternar mais desapegada. Como minha filha é T21, a impressão que poderia ficar é a de que eu me importo menos. Claro que me importo do mesmo jeito, ou até mais. Porém, a sensação de que você TEM QUE demonstrar as coisas é algo exaustivo.



Aí vem o julgamento, machucando o coração


Mesmo sabendo das minhas convicções, vinha esse medo. Medo do julgamento sim. E vamos naturalizar o medo do julgamento alheio, falamos?! A gente é humano e vive em sociedade, tá tudo bem a pessoa ter esse tipo de pensamento. O ruim é quando isso começa a atravancar a sua vida.


Quando pensei que era bobagem fazer lembrancinha, pensei na possibilidade de ser questionada por minha própria filha, já adulta, do porquê dela não ter tido lembrancinha de nascimento, sendo que a irmã dela teve (minha enteada) e eu mesma tive e guardo a minha até hoje. Tive medo dela pensar, mesmo que por um único segundo, que ela era teria sido amada de menos.



Nasce uma mãe, nasce uma culpa


Os pensamentos julgadores sempre escapam num olhar aqui e ali, numa fala displicente. E pinicam. Incomodam. Tipo etiqueta de roupa que a gente esquece de tirar.

Fiz as tais lembrancinhas, fiz o livro do bebê e tudo mais. Minha filha merece o mundo, e o mundo tem que saber disso. E no exato momento em que escrevo essas linhas, uma leveza enorme toma conta do meu corpo e subitamente quero dormir. É um alívio muito grande poder admitir isso. Sim, me incomoda o que as pessoas estão pensando. Não por elas pensarem, mas porque são incompetentes em guardarem seus pensamentos para si.


Os pensamentos julgadores sempre escapam num olhar aqui e ali, numa fala displicente. E pinicam. Incomodam. Tipo etiqueta de roupa que a gente esquece de tirar. Muitas pessoas quando ouvem você corajosamente expor os seus medos, têm a reação de pormenorizar as suas preocupações e atribuir alguma questão mental às suas queixas. Porque será que a maioria dessas pessoas são do sexo masculino? Curioso. Quando se passa a entender a importância do tal "lugar de fala" e do exercício da empatia, muita coisa que antes a gente classificava como "viagem" ou "loucura" da cabeça do outro, passa a fazer um baita sentido.



Não quero fazer história


Nós mulheres dos anos 80 nascemos no meio do caminho entre ser uma dona de casa sem culpa e ter uma liberdade total e absoluta para fazer o que quiser. E aí está a pegadinha do malandro. Estamos no meio do caminho de uma estrada que ainda está sendo construída. Estamos paradas sem poder avançar, porque ainda estamos abrindo a picada.


Hoje é inadmissível uma mulher não trabalhar. Mas ter a casa bagunçada também não pode. Mais pra frente, as pessoas vão ler sobre isso nos livros de história. Vão ler sobre mulheres que foram achatadas por essa transição histórica e sentir pena. E temos que admitir que estamos nesse momento histórico; e é um saco entrar pra história. Gente que faz história geralmente tem uma morte horrível. Não quero fazer história, eu quero dormir oito horas por dia e não ter que dar satisfação a ninguém (me julguem).


Mais pra frente, as pessoas vão ler sobre isso nos livros de história. Vão ler sobre mulheres que foram achatadas por essa transição histórica e sentir pena.

Cobranças sexistas


Acho um absurdo ter gente (que eu conheço muito bem inclusive) com dificuldade de aceitar os acontecimentos. Chamam nós mulheres de “mimizentas”, mas o fato é que um homem não é cobrado pela organização e demandas da casa, mas a mulher sim.

Então a gente vive a dicotomia de ter que ser uma baita profissional e o medo do julgamento das pessoas que vão na tua casa (até mesmo daquelas que trabalham pra você) e veem que você deixa louça escorrendo pra secar. Toda vez que alguém me questiona se não vou secar a louça, repito o mantra que bem me ensinou uma prima mais velha "deixa aí que Jesus seca".


Já me libertei de zilhões de coisas que o patriarcado enfiou na cabeça das mulheres das gerações anteriores, mas ainda me sinto observada por um grande irmão que sussurra silenciosamente no meu ouvido: “olha aí você deixando a desejar como mãe”. E a verdade, - precisamos falar sobre isso também – é que um modelo (de qualquer coisa) é uma construção social, e que nem todas as pessoas precisam se encaixar nele.


Eu estou longe de ser uma mãe grude. Não sou aquela mulher desesperada que quer ficar agarrada com a filha 24 horas e não deixa ninguém chegar perto. Sim, pode pegar no colo. Sim, pode dar de mamar. Minha maternidade não se resume a serviços. Só que isso não me impede de perceber os olhares julgadores. Olhares que dizem “mas você tinha que fingir que não queria deixar, pelo menos por alguns instantes”. Acho engraçado que esses olhares nunca recaem sobre a figura do marido, que pode trabalhar dias a fio parando só meia horinha pra brincar com a criança.



um mural em cortiça segura pedaços de papel com as atribuições de homem e mulher para sair de casa.
uma singela comparação da quantidade de atribuições que uma mulher e um homem tem em um dos muito arranjos familiares domésticos


Maternidade atípica ou atríplica?


Na maternidade atípica, todas essas culpas, medos e julgamentos tomam uma proporção ainda maior: é da mãe o dever de estudar e se informar sobre as terapias e tratamentos para o filho. É da mãe a responsabilidade de participar de grupos de pais, de fazer cursos para aprender a lidar com a criança de modo a otimizar o seu desenvolvimento. E este é um arranjo estrutural criado muitas vezes sem qualquer planejamento pelo argumento de que a mãe precisa mesmo parar ou diminuir a carga de trabalho em virtude da gestação. Neste ponto, a lógica do "ja que" impera sem dó. "Já que tá ganhando menos...", "Já que tá mais tempo com a criança...", e por aí vai.


Então somamos à dupla jornada feminina mais uma cama: a da jornada atípica. Ao pai atípico, basta que tenha ficado na vida da criança, já se torna digno de louvores perante a sociedade. Todo o resto recai nas costas da mãe. E essa mãe cansada da tripla jornada, precisa ainda ser uma mulher atraente e interessante para que não venham falar que está “largada”. Me perdoem os leitores, mas este é um tema necessário.


Aqui em casa temos a sorte de fazer home office. Porém um total de zero pessoas se dirige ao meu marido no meio do expediente para lhe mostrar que a mancha saiu do tecido. Esse tipo de coisa está tão automatizada no cérebro das pessoas que muitas mulheres nem se dão conta de que isso acontece; enquanto os homens têm certeza absoluta de que nada está acontecendo. Muitos até desconhecem o conceito de carga mental. Por conta disso, me sinto na obrigação de falar sobre aqui neste espaço.



O que é carga mental?


Carga mental é uma atividade do cérebro em se preocupar com coisas, necessidades e preocupações das mais diversas. Usamos esse termo para falar do acumulado de preocupações que uma mulher precisa ter para com a casa e a família de maneira que tudo possa funcionar na sua mais perfeita normalidade. Até hoje não conheci um homem que tivesse usado a frase: “está na hora de colocar as cortinas pra lavar”. Sim cavalheiros – cortinas e tapetes precisam ser lavados regularmente – é preciso ter um controle mental de quando em quando isso tem que acontecer. Imagine que a casa (e a família) é uma empresa.


Quando você mora sozinho(a) é como se você fosse um empreendedor individual. Você toca o negócio do seu jeito, pois a empresa é enxuta e você sozinho dá conta de administrar o caos que somente você gera. Já uma família é uma grande empresa, dessas com vários departamentos e tudo mais. Os funcionários precisam ser delegados, caso contrário não fazem nada. Para essa tarefa, precisamos ter um gerente. Só que o gerente, não apenas gerencia os funcionário, como ele mesmo exerce múltiplos cargos dentro da empresa e mais – trabalha numa empresa concorrente também (a empresa em que ele trabalha de verdade).


Na empresa casa/família, o gerente não só tem as incumbências de gerente como também tem incumbências de cargos nos mais variados níveis de hierarquia: do almoxarifado e limpeza até o RH. É ele quem decide o momento de colocar o lixo pra fora, de trocar a roupa de cama, de fazer a lista de compras e de comprá-la. As duas empresas em que o gerente trabalha cobram que ele seja um funcionário exemplar, diligente, animado e disposto. Na empresa casa/família inclusive, o trabalho do gerente é inspecionado constantemente por auditorias das mais diversas que frequentam o estabelecimento sem aviso. Pois é senhores, carga mental não é brincadeira.


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