top of page
Buscar
Foto do escritorLuciana Garcia

Celebrar vidas atípicas importa

Um momento para celebrar o renascimento e a vida.




Quando Maya operou o coração, ela nasceu de verdade. Sempre falamos isso aqui em casa, pois o coração “novo” permitiu que ela pudesse viver a vida longe de uma cama de hospital. Ela nasceu com 2.995kg e quando foi operada tinha 3.080kg. Durante os 3 primeiros meses de vida, ganhou menos de 100 gramas. Ela era alimentada por uma sonda e respirar era praticamente um crossfit para ela, cujo coração aberto encharcava o pulmão em detrimento do sangue que deveria abastecer o restante do corpo. Consideramos então o dia da cirurgia como seu verdadeiro aniversário, e baseamos todos os parâmetros de desenvolvimento dela de acordo com essa data – e não com a sua idade real.


Sempre achei que esse lance de festa de um ano é uma coisa mais para os pais do que para a criança - que não se lembra de nada depois de passados uns anos.

Não somente com relação a maternidade, mas de uma forma geral, me considero uma pessoa bem pé no chão (vai vendo). Sempre achei que esse lance de festa de um ano é uma coisa mais para os pais do que para a criança - que não se lembra de nada depois de passados uns anos. Quando engravidei, achei que não ia fazer festa de um ano. Nem álbum do bebê. Talvez nem tivesse de fato um enxoval. O importante, afinal, é a chegada do filho, não é?! Pois é. Só que na maternidade atípica, as coisas mudam um pouquinho de forma.


Uma série de pensamentos estranhos passam pela nossa cabeça durante a gestação. Algumas mães, seja pela forma com que recebem a notícia, seja pelo seu histórico de vida, seja por informações equivocadas que receberam, vivem uma espécie de luto daquele filho idealizado durante toda a vida. Este não foi o meu caso por diversas razões. Uma porque nunca tive esse desejo ardente de ser mãe. Esse desejo nasceu quietinho, bem depois de adulta, o foi ganhando forma nos últimos anos. Depois, sofri um aborto espontâneo dois meses antes de engravidar da Maya. Quando fizemos o primeiro morfológico, a suspeita era de uma síndrome genética ainda mais comprometedora que a trissomia do 21. Se confirmada a suspeita, a expectativa de vida da criança era de 2 anos. Então, quando descobrimos que nossa menininha tinha T21, comemorei demais o milagre da vida e a possibilidade de uma vida longa.



Uma gestação não convencional


Mas independentemente de como vivemos a gestação atípica, há algumas coisas que são comuns a todas as mães: junto com a aceitação do filho que você terá, vem o medo de que ele pense (quando adulto) que em algum momento não foi amado ou desejado. Quando comecei a me aproximar do final da gestação, senti a necessidade de fazer um álbum do bebê. Pensava na Maya crescida, querendo saber sobre a sua chegada ao mundo. Não me via dizendo “filha, a primeira médica da mamãe queria que eu tirasse você”. Ninguém merece ouvir isso.


Então me preocupei em criar recordações que pudessem acompanhá-la na idade adulta. Nós já sabíamos da condição cardíaca dela na gestação – e que ela nasceria e já ficaria na UTI. Além disso, eu tinha pavor da ideia de receber visitas no hospital. Mesmo assim, decidi fazer lembrancinhas de nascimento para ela. Algo que seria presenteado aos primeiros que viessem a conhecê-la, seja qual for o tempo.



Com o coração na mão


Maya viveu 3 meses no hospital, se alimentando por sonda antes da cirurgia. A sua condição de saúde era muito crítica e, se não fosse operada naquelas condições (tão pequena e tão cedo) talvez não sobrevivesse. Por isso decidimos que sim, precisaríamos fazer uma festa em comemoração àquele renascimento: o aniversário não da Maya, mas de seu coração. O tema, como não poderia deixar de ser, seria coração. Porém, por ironia do destino, havia uns 3 anos em que não experimentava uma situação financeira tão desafiadora. E queria fazer uma festa incrível. Como tenho uma vasta experiência com cenografia (herança dos anos de teatro) criei tudo sozinha, e fiz 99% de tudo à mão.

Passei quatro meses recortando corações madrugada adentro. E ficava pensando, invariavelmente, o porquê de tanto trabalho. Eu poderia ter feito uma festa mais simples? Poderia. Poderia ter feito uma decoração mais modesta? Claro que sim. De alguma forma, todo o trabalho que tive para montar aquele cenário estava ligado à necessidade de mostrar para minha filha o tanto de amor eu dedico a ela. Trabalho é amor. (Não esse trabalho que você faz em troca de dinheiro, mas o trabalho não remunerado). Trabalho, eu já ouvi uma vez, é algo que você faz em benefício de uma outra pessoa sem que ela tenha te dado promessa alguma de retribuição. Você faz porque você gosta, faz porque quer bem, e ponto.


Geralmente quando faço algo assim, trabalhoso, fico preocupada com a experiência que as pessoas vão ter naquela, digamos, imersão. Nos dias que antecederam a festa, cheguei a pensar em como provavelmente ficaria nervosa, preocupada com os detalhes na hora. Mas ironicamente, depois de tudo pronto, olhei para o que eu tinha feito e pensei “É isto que tenho pra oferecer. Espero que gostem”. Naquele momento, me dei conta de que neste evento especificamente, os convidados já não importavam mais. Os convidados eram gente amiga, pessoas que conheceram a Maya pessoalmente neste ano tão importante, antes e após a cirurgia. Não estavam preocupados com a festa. Estavam ali sim, para aplaudir a nossa pequena heroína, que saiu da UTI em tempo recorde no pós-operatório. Guerreira que só ela. E então eu pude compreender que de verdade só importava a Maya, e as recordações que ela teria daquele evento (devidamente registrado nos mínimos detalhes).


Iguais, porque somos um só


Ela estava com uma dorzinha de dente no dia da festa, mas ainda assim conseguiu aproveitar. Chegou no salão com os olhos arregalados ao ver tanto brilho e tanta gente. Meu coração se encheu de felicidade. Ela usou o mesmo vestido que eu usei em meu aniversário de um ano – o que deixou tudo para mim ainda mais simbólico. Quando olho para minha filha, não vejo a deficiência dela; vejo a minha filha. Maya e eu somos iguais, em nossas capacidades infinitas e deficiências limitadas.



28 visualizações1 comentário

Posts recentes

Ver tudo

1 comentario


Glauco Rigol
Glauco Rigol
01 dic 2023

Simplesmente emocionante. E esse final resume absolutamente tudo sobre nós seres humanos "nossas capacidades infinitas e deficiências limitadas".

Sensacional. Genial. Emocionante. Tapa na cara!

Me gusta
bottom of page