Como a maternidade e o teatro me ajudam a enxergar a luta contra o capacitismo
Tenho caminhado numa dupla jornada de ativismo que traz questões interessantíssimas para a minha mesa íntima. Como mãe de pessoa com deficiência, me vejo no lugar de estimulação das múltiplas potencialidades que a primeira infância oferece, estudo incansável do que se pensa e se pratica no campo da medicina, fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, terapia comportamental, educação, pedagogia e artes aplicadas. Minha filha tem apenas 2 anos e uma vida de descobertas e desafios pela frente.
Por outro lado, me vejo como professora de jovens e adultos com T21 buscando entender como aplicar os conhecimentos que eu tenho do teatro para os jovens e pesquisando de forma empírica e prática o que ainda é possível transformar e oferecer em termos de aprendizagem, protagonismo, autonomia e etc. Nesse campo, estou sempre atenta ao que os alunos absorvem do que eu compartilho com eles e ao que eles devolvem dos estímulos oferecidos.
Os pais, muitas vezes ficam curiosíssimo para saber o que ocorre em sala de aula. Porém eu teria que dar praticamente uma palestra após cada aula para falar sobre o que eu planejo em cima da teoria do teatro, a finalidade destas atividades de maneira prática na vida deles (os alunos) e o objetivo que é esperado de cada dinâmica. Acontece também de eu fazer um planejamento e este mesmo mudar completamente no decorrer da aula a partir daquilo que aconteceu em sala. É um processo muito dinâmico e que talvez eu, neste momento, não seja capaz de assimilar a quantidade de insights sobre teatro para pessoas com deficiência intelectual estejam se materializando a minha frente. Muitas vezes, eu percebo comportamentos aos quais não consigo nomear ou entender de onde vêm. Eles ficam “guardados no bolso” e de repente, numa aula lá na frente, um outro fragmento de informação aparece e se conecta com o anterior, de modo que tudo faz um sentido tremendo.
Mensageiros do apocalipse poderão aparecer, eventualmente, dizendo que estou fazendo “experiência” com os alunos.
Mensageiros do apocalipse poderão aparecer, eventualmente, dizendo que estou fazendo “experiência” com os alunos. E no sentido de nunca ter dado aula para pessoas com a T21 isso é a mais profunda verdade. No entanto, posso contar nos dedos das mãos as pessoas que conheço no Brasil e se propõe a trabalhar com T21 que realmente oferecem autonomia e protagonismo. Talvez seja complexo de compreender, estando fora da sala de aula, o verdadeiro sentido dessa palavrinha que anda tão na moda: protagonismo.
Quando levamos nossos filhos ao teatro, é natural que imediatamente os imaginemos em cima do palco, andando para lá e para cá, dando falas e interpretando uma personagem. Porém tudo isso, que é tão conectado ao imaginário teatral, é a última coisa que o teatro oferece.
essas práticas despertam gigantes interiores adormecidos que uma vez acordados passam a se manifestar na vida cotidiana trazendo benefícios e múltiplas conexões com o existir social.
O teatro, é um espaço que oportuniza o entendimento profundo da existência humana e de suas formas de atuação na vida. É um local de reconhecimento do EU, da possibilidade irrestrita e infinita de manifestação de sentimentos e desejos. Um local de pertencimento e de conexão com o outro. Em suma, isto é teatro e para quê ele serve.
Para chegar nesse local de proporcionar verdadeiramente a prática teatral, é preciso fazer exercícios e dinâmicas que pouco tem a ver com texto, enredo, personagem. No entanto, essas práticas despertam gigantes interiores adormecidos que uma vez acordados passam a se manifestar na vida cotidiana trazendo benefícios e múltiplas conexões com o existir social.
Não acredito que dar falas para serem decoradas e marcações para serem seguidas sejam de qualquer valia para estes jovens fora do contexto teatral.
O curioso é que, embora muito diversas, tanto a minha prática de mãe atípica, como a de professora de alunos atípicos, trazem um questionamento em comum que é: o que é realmente inclusão? É possível que desavisados que cheguem aqui somente neste parágrafo imaginem que estou sendo capacitista ao não entregar uma peça para os alunos ensaiarem. Quando aceitei o convite para dar aulas de teatro para T21, fui muito firme em salientar que o meu objeto de trabalho é “O corpo do ator”, esse corpo que não é somente físico, mas que diz respeito a todo o repertório que um ator tem para utilizar em cena e fora dela. Não acredito que dar falas para serem decoradas e marcações para serem seguidas sejam de qualquer valia para estes jovens fora do contexto teatral.
Tenho sempre comigo o princípio de que é o aluno que precisa me mostrar os limites dele, e não o contrário.
Tenho percebido um movimento social muito intenso no sentido de camuflar a deficiência em diversos contextos e “passar pano” para questões que jamais seriam admitidas numa dinâmica típica. Algo que sublinha, para mim, uma afirmação que a pessoa não é capaz. Tenho sempre comigo o princípio de que é o aluno que precisa me mostrar os limites dele, e não o contrário. De forma que ele precisa ser exposto a regras e instruções para se haver com o mundo “real” e dar uma devolutiva: consigo ou não consigo. É claro que tudo isso precisa acontecer de maneira adaptada e acessível.
No meu entendimento, o excesso de paternalismo, concessões e permissividade, somente faz o indivíduo permanecer numa zona de conforto onde não é necessário lidar os problemas das pessoas típicas. Por mais que estejamos lutando pela inclusão e afirmação da diversidade, é preciso entender que tudo na vida é um combo. Não existe a possibilidade de ter um emprego sem ter obrigações. Qualquer coisa próxima a isso está mais parecida com um capacitismo camuflado do que com inclusão. Em outras palavras, lutar pela inclusão não é fazer de tudo para que minha filha não sinta dor. É batalhar para que ela tenha a oportunidade de ter tantas frustrações e obstáculos na vida quanto qualquer outra pessoa. Faz sentido?
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