A difícil tarefa de voltar à normalidade.
Lembro-me com se fosse hoje de acordar no hospital e ouvir minha amiga chamando
a enfermeira: ela acordou! Francina estava na aula de teatro comigo e foi quem me socorreu e me acompanhou até o hospital. Naquele momento, ela era uma das poucas amigas que eu tinha. No ano anterior, havia trancado o curso para me aventurar com algumas amigas numa companhia de teatro que resultou num desastre completo – incluindo um prejuízo enorme e uma crise de rim em pleno festival de Teatro de Curitiba (uma longa história para um filme de terror).
Quando retornei às aulas, obviamente já não tinha mais a minha turma anterior, e sim uma nova classe de desconhecidos que olhavam com curiosidade e desconfiança para
a magrela estranha recém-chegada. No primeiro semestre, não pude participar ativamente do espetáculo/montagem do meio do ano (que é uma das formas que as escolas avaliam
o desempenho dos atores). Estava tão chapada de remédios para conter a síndrome do pânico e depressão que era incapaz de andar e ler um texto ao mesmo tempo, que dirá decorá-lo. O certo naquela hora seria trancar o curso e me dedicar inteiramente a cuidar da saúde, já que eu não estava bem. Mas o curso, o teatro, era a única coisa que me fazia levantar da cama pela manhã – era minha única razão para viver. Eu tinha medo de que, se perdesse aquilo, nada mais me daria motivos para continuar. Então numa reunião com
a professora/diretora da montagem, fui autorizada a ficar apenas na assistência de direção, para não perder de frequentar o curso. Tinha nessa época 5 ou 6 pessoas na sala que falavam comigo, que sabiam do meu problema e a quem eu poderia chamar de amigos. Francina era a mais fiel. Ela insistiu com o professor de que realmente precisariam me levar ao hospital. Aos olhos do soberbo francês, eu era uma aluna preguiçosa que estava dormindo em meio a aula.
Soube que falou algumas palavras de desprezo pela minha “atitude” e me jogou um copo de água na cara. Ao perceber que eu não tive reação alguma, aí então decidiu notificar a secretaria".
Soube que falou algumas palavras de desprezo pela minha “atitude” e me jogou um copo de água na cara. Ao perceber que eu não tive reação alguma, aí então decidiu notificar
a secretaria. Fui colocada num taxi e Fran me acompanhou até o hospital. No momento em que acordei, meu namorado falava com minha mãe ao telefone – que já estava no aeroporto a caminho do Rio de Janeiro, preocupada comigo, como sempre. O médico então entrou no quarto e me deu aquela chacoalhada que eu tanto precisava. A partir desse dia, tomei consciência do meu problema e comecei um movimento para voltar
a comer. Não foi fácil!
Depois de muito tempo fazendo restrição alimentar, o seu estômago vai se desacostumando a comida. É como se ele não estivesse mais acostumado com sólidos... bem, não tenho muitos conhecimentos de medicina, mas o que posso dizer é que, ao dar uma garfada em qualquer coisa, já me sentia satisfeita. Pior: quando eu insistia em continuar comendo, precisava lutar contra a ânsia de vômito e não conseguia passar da terceira garfada. Eu era atendida na época por um psiquiatra e uma psicóloga,
e aparentemente não há muito o que se fazer quando um paciente não consegue ingerir alimentos a não ser a chamada “tentativa erro”. Os dias iam passando e eu sempre gastando meu pouco dinheiro num prato de almoço comercial do qual não se retiravam mais de dois garfos de comida. Não sabia mais o que fazer para voltar a comer... até que, conversando com uma amiga, ela sem saber me deu uma luz. Ao telefone ela me dizia que ao menos o meu problema não era como o dela, que havia tomado muito biotônico na infância e agora não conseguia mais parar de comer.
"Então pelo menos uma vez por dia eu tomava esse xarope e comia tudo que de mais calórico eu pudesse ver pela frente - numa tentativa de recuperar os zilhões de neurônios perdidos e ter energia suficiente para promover algumas minúsculas mudanças na vida".
É incrível como as pessoas sentem uma necessidade louca de fazer campeonato de desgraça, ainda que a concorrência seja desleal. Mas essa conversa me deu uma luz.
E o que vou contar agora não recomendo pra ninguém. Não é um conselho, não é uma orientação, é a minha experiência. Comprei um vidro de um remédio infantil de abrir
o apetite e comecei a tomar. No começo achei que não fosse ter sucesso com aquilo, mas de fato senti uma fome de leão. Abriu-se um buraco negro dentro do meu estômago
e pensei: a hora é agora. Então pelo menos uma vez por dia eu tomava esse xarope
e comia tudo que de mais calórico eu pudesse ver pela frente - numa tentativa de recuperar os zilhões de neurônios perdidos e ter energia suficiente para promover algumas minúsculas mudanças na vida. Sim, eu acredito que mudança não está relacionado somente à força de vontade. É preciso ter um aparato biológico mínimo que te dê força física para isso. Sem o uso do xarope, eu não sentia mais fome. Algumas vezes ao dia tinha uma dor de cabeça monstruosa. - isso é fome – comentou a minha terapeuta – a dor de cabeça é o organismo avisando pra você que tá faltando comer. A que horas fez sua última refeição? Olhei no relógio e pensando um pouco percebi que havia 18h que não comia nada de substancial. A partir desse dia comecei a ficar esperta. Colocava um despertador no meu celular de 3 em 3 horas pra me lembrar que era hora de comer.
Anorexia, assim como todos os outros tipos de transtornos obsessivo-compulsivo, é uma coisa que tem vida própria. Quando você aprende algo sobre a doença, parece que a doença aprende isso também (na verdade o seu inconsciente, né?!) e começa a buscar formas periféricas de contornar o seu aprendizado e cumprir o mesmo objetivo: te matar aos poucos com requintes de crueldade para a plateia. Nessa altura do campeonato o relógio funcionou muito bem comigo e usei essa estratégia ao longo de uns 3 anos pelo menos. Ainda hoje, se eu pulo uma refeição a tendência é que eu estique a próxima refeição ao máximo possível, aumentando assim
a minha elasticidade para um estado de jejum. Não posso descuidar disso um segundo sequer. Se eu me acho gorda hoje? Sim, eu me acho gorda. Não gooorda, gooorda, mas dentro de mim tem sempre uma voz dizendo que eu poderia ser mais magra, ter uma barriga mais bonita, um bumbum menor, uma coxa menos grossa. São pequenas auto-sabotagens que o mercado de consumo insiste em reafirmar em cada propaganda com modelos magérrimas de 2m de altura cobertas de photoshop que você vê. Nos dias em que eu acordo com esse diabinho no ouvido, fico pensando naquela máxima e fazendo disso um mantra: as garotas mais magras são as garotas mortas. Tá tudo bem eu ser como sou.
📸 : 1) Gino Crescoli 2) Arquivo de família, Bali.
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